Domingo, 20.12.09

Vida é  magia

 

 
 Era uma vez uma casa onde viviam três irmãos, duas raparigas e um rapaz. O Natal estava à porta. Cada um escreveu uma carta expressando as prendinhas que gostava de receber nesse Natal. Os pais haviam-lhes explicado que as crianças tinham prendas na noite de Natal, data do nascimento de Jesus, para simbolizar as prendas que os Reis Magos levaram ao menino na noite do seu nascimento. Tal como Jesus as crianças são uma promessa de continuidade para a humanidade e a esperança num mundo mais justo para todos. Em cada criança habita uma parcela de Jesus, disseram os pais e explicaram: os Reis Magos levaram ao menino, Ouro, Incenso e Mirra. O mais velho, o Rei Melchior, da Ásia levou o ouro. Gaspar, o mais jovem dos Magos, da Europa levou o incenso. O último a chegar foi o Rei Baltazar vindo de África, que levou Mirra. Na época do nascimento de Jesus estas prendas eram sagradas simbolizando, respectivamente, a realeza, a divindade e a imortalidade, explicaram-lhes. Nesse ano as crianças dividiram-se nos destinatários das cartas que, como de costume, entregaram à mãe, o correio. Duas escreveram ao menino Jesus e só uma ao Pai Natal. Os pais estranharam pois o Pai Natal era omnipresente na publicidade, nas montras, nas decorações e nos media com a cidade do pai Natal e o turismo à Lapónia, mais os pais natais ao vivo espalhados pelos shoppings e lojas da cidade. O Pai Natal era um figura visível, palpável, enquanto que Jesus não. Mas sabiam que os filhos deviam decidir por si, aprenderem autonomia responsável desde cedo e, apesar da curiosidade, nada perguntaram sabendo que um dia o assunto viria à baila. O que ninguém esperou foi que ambos respondessem ao apelo e quando naquela manhã de Natal, filhos e pais correram para os sapatinhos ao lado da chaminé, debaixo do pinheiro, depararam com o Pai Natal e o Menino sentados no sofá da sala a conversar, petiscando rabanadas. Para todos foi a melhor prenda de Natal e, a partir daquele dia, nunca mais tiveram dúvidas de que a vida é algo mágico em que tudo pode acontecer.

 Conceição Paulino
S.Mamede,, 03. Dezembro 2009 

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O Natal

 

Era uma vez… e assim começavam sempre as histórias que escutava e mais tarde leria.
Naquele tempo… outras histórias assim começavam.
Essas histórias remetiam sempre o leitor para um tempo outro, já passado. E sempre as histórias tinham um final dito feliz, muito embora, nalgumas delas, os personagens interviessem, activa ou passivamente, em situações de grande complexidade e dramatismo.
Falar de natal é falar de nascer. Falar do Natal, assim com maiúscula, é falar de Jesus, o cristo, isto é, o ungido.
Jesus nasceu na Palestina, há mais de dois mil anos. Ao tempo, a Palestina era uma colónia do Império Romano. O Império, por sua conveniência, concedia ao povo colonizado a liberdade de culto. O poder político palestino instituído era inteiramente controlado pelo Império, num procedimento que faria escola em tempos subsequentes.
Pela leitura que faço do Novo Testamento, Jesus nasceu, viveu e morreu judeu. E pela resposta que lhe é atribuída de que não vinha alterar a Lei Mosaica, mas cumpri-la, afigura-se-me que pretenderia reformar a situação que vivia o seu tempo.
Pela mesma leitura que faço, Jesus, tal como todo o Povo Judaico, entendia, à época, que a Palestina era um Estado Teocrático. E exactamente por isso, todos os seus ensinamentos reformadores se subordinavam à visão religiosa condensada nos no Decálogo – os Dez Mandamentos da Lei de Deus.
O evangelista mais antigo não refere o nascimento nem a meninice e a adolescência de Jesus. Certamente porque não sabia ou porque considerou irrelevante referi-lo.
Salvaguardando uma melhor opinião, creio bem que Jesus se impõe ao respeito da Humanidade pela acção que desenvolveu e não pelas vicissitudes de nascimento, de infância e adolescência, estas presumivelmente comuns aos demais judeus do seu tempo.
Jesus é uma figura maior da História da Humanidade, independentemente da questão religiosa.
Para mim, o Natal é a recordação do nascimento de Jesus enquanto ser humano. Tal como a Páscoa é a recordação da tragédia da sua ignominiosa morte.
Alguém criou esta frase feliz: Para que a memória não esqueça. Porque concordo com ela enquanto exortação, recordo o nascimento e a morte de Jesus, independentemente das incertezas das datas em que terão ocorrido.
Enquanto ser humano assumidamente preocupado com a dignidade de toda a sorte de vida que existe, curvo-me perante todos os que lutaram e morreram pela Vida.
.
José-Augusto e Carvalho
Viana, 4 de Dezembro de 2009
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Em torno da ideia do Espírito do Natal
 
Num tempo que já vai longe, onde só era menina, não mulher-menina nem a menina-mulher-a-envelhecer que hoje sou, contavam-me histórias. De espanto umas, de encantar outras. O menino Jesus era a figura central das histórias do Natal e da sua celebração entendida como nascimento desse menino – sim porque todos temos o nosso dia de natal – em ano e data desconhecida, sendo o 25 de Dezembro meramente simbólico mas carregado do melhor simbolismo que a humanidade pode desejar e até sonhar. Cresci com o menino-Jesus que nos deixava prendinhas nos sapatinhos colocados junto à chaminé na véspera do Natal, . O pai Natal não fez parte do meu imaginário. Jesus, o homem que nasceu e morreu por humanas mãos e deixou mensagens de amor, igualdade e justiça entre os Homens sempre fez. Fui conhecendo melhor o que disse, o que pregou, como agiu (mais velha li e reli a Bíblia), e concluí - até hoje disso estou convicta -  ser Jesus o paradigma humano para o qual devemos evoluir. Humanidade era o que ele tinha. O que ele era. Nós somos ténues sombras de incipiente humanidade e o homem que Jesus foi, é/deve ser o nosso modelo. Veio dizer-nos como podemos ser humanos por inteiro e, mais, veio dizer-nos que podemos crescer e ser como ele, o verdadeiro humano. Filhos de Deus todos somos, segundo o meu entendimento e muita reflexão e segundo a Igreja que se estriba na Bíblia mas que dela faz (por norma) uso diverso do que dita o meu entendimento espiritual (se de entendimento neste domínio se pode falar). Há que levar a sério esta nossa dimensão espiritual ou o que lhe quiserem chamar: o de ser Humana, mas humana com H bem grande porque por agora somos seres rasteiros demais na escala evolutiva do que ser humano significa. Como os antigos conduzidos por Moisés adoraram o bezerro de Ouro criámos e/ou deixámos criar uma sociedade que adora o que é material, o capital e não ama nem honra o ser humano. Vamos lá crescer? Já é tempo. A unidade de vida está cansada de tantas asneiras e desrespeito por nós perpetrado. Podemos ser a próxima espécie em extinção. Bípedes mas não humanos na totalidade que o planeta pode descartar rapidinho. Basta-lhe um soluço mais forte.

 

Conceição Paulino,
S. Mamede de Infesta,
sábado, 5 de Dezembro de 2009
 
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 Uma carta

 

Caro Pai Natal, 

Este ano, sou eu quem te escreve uma carta.

Talvez te admires por ser de uma mulher adulta ,

que não te pedirá  qualquer presente;

apenas que a escutes.

Às vezes, precisamos de ter quem nos ouça;

porque saber ouvir é  uma arte que nem todos

dominam.

Dispersam-se, interrompem-nos,

não lêem nas entrelinhas e

continua-se sem ver a luz.

A luz do Natal que se aproxima e

eu escondo-me no canto mais escuro

que encontrar.

Se tenho boas recordações do Natal?

Os Natais em que eu era criança

e a vida

era pura magia.

Ou pensava eu que era magia,

porque nada é  como pensamos

e por vezes,

sucumbimos à tristeza.

Não a posso ignorar,

mesmo que a disfarçe

nas cores brilhantes do Natal.

O vermelho apaixonado

O dourado majestoso

O verde  trapalhão

O branco humilde

E, sempre a luz

a dominar o horizonte.

Mas nem sempre o coração.

É por isso que te escrevo,

Pai Natal.

Talvez reencontre a magia

do Natal se viajar contigo

e ouvir as crianças rirem-se.

Adoro ouvir o som do seu riso.

Ao usufruirem totalmente

esse momento

que é a descoberta

do brinquedo desejado.

Talvez agora eu consiga sorrir

a quem, às vezes, não se

lembra do meu nome.

Seja capaz de engolir as lágrimas

e brincar, contando pequen as

histórias que podem ser

classificadas como

autênticos disparates.

Mas se fizerem rir...

Se houver um brilho no olhar...

Volta-se à infância na velhice

mas o que magoa mesmo,

é encontrar

pessoas que não entendam esta dor.

De não se ter um sorriso,

um gesto de boas-vindas

quando se entra na casa

onde já houve uma família.

O que eu quero neste Natal?

Não vamos desejar mais do que

o óbvio e isso, Pai Natal,

acho que sabes o que é.

Estar sempre presente,

por muito que doa. 
 

Marta Maria Vinhais
Porto, Dez.2009

 

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Fotografia: Micas Dez/05
 
 
No aconchego da minha casa, faço um pedido à mais bela estrela do céu. Quero ver pão na mesa de cada irmão. Quero ver a esperança brilhar no olhar de cada criança.
Saúde e conforto para aqueles que sofrem. Quero ver Luz no coração de cada um. Sentir o amor e união entre os homens. PAZ Para todos um mundo igual Sim, esta seria a minha melhor prenda de Natal. A todos desejo um Natal de muito amor e muita paz e, que o Novo Ano de 2010 vos traga tudo aquilo que mais desejarem. Que seja um ano de Esperança, Paz e muita Luz.

 

Maria Streibhardt

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"A avó
  
A febre subira e os delírios começaram.
Toalhas molhadas na testa para que aquela maldita temperatura não queimasse os miolos embora estivessem bem resguardados naquela cabeça dura, era a mezinha aplicada.
Horas a fio naquele tormento de põe e tira os panos gelados.
Que chatice aquele estado pré-gripal que o punha meio sonso e sem forças para sair da cama.
Precisava tanto de se levantar! Queria estar apresentável e mostrar à avó que afinal valera a pena ter confiado nele.
Mas a febre teimava em não o largar..
Talvez um chá bem quente com uma colher de mel e um cálice de aguardente dentro fosse o remédio indicado.
Mas não!
O álcool, esse inimigo que o derrubara mais que a febre estava proibido sob qualquer pretexto.
Era preciso mostrar à avó que valera a pena o sacrifício das saudades e que a fé dela tinha sido importante para vencer aquele monstro que tanto o tinha castigado.
Tinha sido longo o caminho para o vencer mas, agora,  já liberto, sentia-se renascer, com vontade de começa de novo e até arranjara uma amiga que lhe mostrou caminhos diferentes daqueles que até ali ele trilhara.
Ah! Se a febre desaparecesse!!!!
 
Estaria a sonhar?
A mão calejada daquela que o vira nascer, aquela mesma mão que o sabia castigar mas que também sabia afagar-lhe os caracóis que ainda conservava estava a pôr-lhe mais uma compressa gelada e a dizer-lhe, como sempre o fazia quando a cama o retinha para além do que ela considerava normal: Levanta-te que o Menino Jesus esteve por cá.
 
Não era preciso ser Natal para receber um rebuçado, uma moeda preta ou um pratinho de arroz doce. Bastava que a avó quisesse, e, ali estava ela para mais uma vez fazer o Natal acontecer mesmo num qualquer dia do ano. "
 

Benó

 

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O Monte das Águias

 

 

 

 

Da aldeia de Alambra, o Monte das Águias dista quase uma légua e com um ribeiro cruzando o caminho. É o Ribeiro das Águias, seco no verão, mas um danado nos dias de invernia puxados a chuva.

José  das Águias, conhecido nas redondezas por Ti’Zé das Águias, era o único habitante do Monte.

Seguramente, José  era o seu nome. Nascera num tempo em que os sobrenomes raramente eram indicados e se sucediam aos nomes próprios, aquando do registo de nascimento. O sobrenome das Águias deveria ter sido tomado de empréstimo ao Monte assim designado, onde nascera e sempre vivera, exceptuados os anos de cumprimento do serviço militar.

José  das Águias era um veterano da Grande Guerra de 1914-18. Da Flandres trouxera a memória ensanguentada da violência dos homens e as consequências, não muito graves dos gases alemães. A sua constante companheira era uma caçadeira «Liegeoise», calibre 16, e o Lampeiro, um fiel cão de caça, sentido deveras, dando sinal de intruso a grande distância.

Lampeiro era um cão feliz. Se era o melhor amigo do dono, também tinha no dono o seu melhor amigo. Tinha vida livre e tratamento privilegiado. Dormia onde queria, sob telhas ou ao relento, conforme decidisse, e comia com o dono, numa tocante partilha igualitária. A sua ocupação era estar atento aos intrusos e parar uma ou outra peça de caça.

Lampeiro raramente ia à aldeia. O dono confiava-lhe a guarda do Monte sempre que se ausentava.

Ti’Zé das Águias ia sempre ao romper do dia. Lá fazia o seu avio, petiscava na venda do Jerónimo e regressava pouco depois, chegando sempre ao Monte antes de anoitecer. Era uma hora e meia de caminho na ida e uma hora e meia de caminho no regresso. Caminhava bem, como bom caçador que era, mas a passada ficara mais lenta, vergado às limitações que a idade trouxera.

Ti’Zé das Águias nunca casara. A sua ocupação fora sempre zelar pelo Monte. E assim continuaria, pois era essa a sua vontade e o interesse do dono do Monte, um doutor que vivia na cidade e ali se deslocava, de vez em quando, quase que só nos tempos da caça.

O mês de Dezembro vinha frio e sem chuva. A nortada assobiava. Ti’Zé das Águias acendia a lareira antes do amanhecer. Aquecia água numa panela de ferro talvez mais velha do que ele. Fazia café, o tradicional café de mistura, que trazia da aldeia. Depois, bebia uma caneca do café ainda bem quente e comia pão e linguiça, habilmente cortados com a navalha.

Sentado a seu lado, Lampeiro sempre petiscava com o dono.

Apenas o tempo chuvoso prejudicava as idas à aldeia. Tio’Zé das Águias não confiava no ribeiro nem na ponte de madeira, tão baixa que, à mais pequena enxurrada, a água lambia o tabuleiro e a estrutura gemia aflita. Lembrava-se que, quando mais novo, várias vezes passar a ponte com o tabuleiro completamente coberto de água. Agora, a velhice aconselhava-lhe a maior prudência.

Já  se vivia a quadra do natal. Na aldeia, as mulheres andavam preocupadas com as crianças. Vivia-se, mais uma vez, o período de gastarem o que mal podiam numas roupas para elas, novas ou transformadas. Era a memória do menino que nascera há quase dois mil anos. E era a memória dele que projectava um carinho acrescido sobre as suas crianças.

Ti’Zé das Águias entendia o natal assim: o tempo das crianças. Ouvira falar vagamente da história daquele menino. Em outro tempo, quando tinha de ir à vila tratar de alguns assuntos do Monte, vira a animação na quadra do natal; mas isso fora há muito, ainda o patrão era vivo e a agricultura na herdade era de grande azáfama. Depois da morte do patrão, a situação modificara-se. O menino Luís era doutor e não tinha tempo para olhar pela herdade. Não tinha tempo e nem era homem do campo. Quase só o via pelas rolas, em Agosto; e, depois, quando abria a caça geral, em Outubro. E só aos fins-de-semana.

Naquele fim de tarde e antevéspera de natal, Lampeiro deu sinal. Ti’Zé das Águias veio à porta ver o que se passava. Avistou uma mulher, ainda longe, que caminhava vagarosamente. Esperou que ela se aproximasse, para saber quem era. E ficou surpreendido quando verificou que não a conhecia. Quem seria? E o que quereria dele? E foi ainda a braços com a interrogação que a mulher chegou.

Sem temor, a mulher saudou-o com um boa tarde, senhor!

Ti’Zé das Águias correspondeu à saudação e esperou que ela lhe dissesse ao que ia.

Senhor, começou a mulher, não me conhece, mas sou pessoa de bem e venho pedir-lhe agasalho; e enquanto aqui estiver, poderei dar uma ajuda na casa.

Ti’Zé das Águias convidou-a a entrar e a aquecer-se na lareira. A mulher agradeceu e entrou. Pousou a um canto a trouxa de roupa que trazia e foi aquecer-se.

Sentados, em silêncio, olhavam o lume. Passados uns largos minutos, Ti’Zé puxou da navalha e arretalhou umas bolotas que a mulher dispôs sob a cinza escaldante.

Assadas as bolotas, comeram com gosto e falaram da Vida e das suas vidas.

Ti’Zé ficou sabendo que a mulher, uma mulher exausta das inclemências da existência e precocemente envelhecida, se chamava Maria do Céu, que era viúva, sem filhos, que andaria pelos sessenta anos, e que decidira abandonar os subúrbios da cidade e regressar para sempre ao Sul, sem nada de seu e sem destino definido.

Lampeiro olhava o lume e achava normal toda a situação.

No dia seguinte, a mulher levantou-se com a aurora e começou a tratar da casa. Quando ti’Zé apareceu, pouco depois, já a panela de ferro chiava na lareira.

Ti’Zé olhou, satisfeito. E disse de si para si: temos mulher!

A mulher, ao vê-lo, deu-lhe os bons dias e disse: esta casa está precisando duma barrela ao meu jeito. E, logo à noite, de uma ceia, porque é véspera de natal.

Ti’Zé correspondeu à saudação e sorriu. Depois, sentou-se à lareira e comeu, como habitualmente: uma caneca de café e uma fatia grossa de pão com linguiça. A mulher acompanhou-o na refeição. E Lampeiro teve, pela primeira vez, duas pessoas a repartir com ele comida e carinho.

Lá  fora, o dia resplandecia sob o sol nascente e um céu todo azul. Nos álamos, a passarada gorjeava, num hino de amor à vida. As galinhas, sempre madrugadoras, há muito que andavam por ali. Saíam e recolhiam a seu bel-prazer, sem peias.

Ti’Zé das Águias saiu, para ver o dia e inspeccionar todas as redondezas da habitação. A tranquilidade era plena. Apenas a nortada assobiava. Era o nordeste, trazendo de Espanha aquele frio seco.

Desceu uns metros até  ao poço. Bem perto, o quinchoso, muito bem tratado. Ali, Ti’Zé tinha as suas verduras, os cheiros e algumas árvores de fruto. Só comprava na aldeia o que a terra não dava.

Regressado a casa, pediu a Maria que o acompanhasse, para lhe indicar o quinchoso, o poço e o galinheiro. Ela seguiu-o, satisfeita. Percebia que encontrara um lar e que a vida lhe sorria.

Cerca do meio-dia, uma açorda de poejos com bacalhau e azeitonas novas foi a refeição. Comeram devagar, entre palavras arrastadas e silêncios prolongados. A mulher falou  da infância triste, da adolescência suada nos campos, e do seu homem, com quem se juntara aos 19 anos, da ida, com o seu Tóino, para os subúrbios da cidade grande, do acidente que o vitimou, na construção civil, e da sua decisão de regressar ao Sul, sem eira nem beira, confiando no destino. Ti’Zé das Águias falou do pai, caseiro no Monte, e da mãe, dois mouros de trabalho. Ali nascera e ali ficara como ajuda do pai. Depois, a guerra levara-o. Quando regressou, continuou como ajuda até à morte do pai. A mãe pouco tempo sobreviveu ao companheiro. Ficou, então, sozinho, como caseiro. Ensinou ao menino Luís, o filho do patrão, os segredos e mistérios da vida animal e vegetal, a caçar, as andanças das aves de arribação e outras tantas coisas do campo. O menino foi crescendo e estudando. Saiu doutor e fixou-se na cidade. Depois, aconteceu a morte do patrão e o fim da agricultura. O rendimento da herdade era agora a cortiça, a lenha e as pastagens. Ficara no Monte para olhar por tudo.

Já  o dia declinava quando a mulher levantou a mesa e lavou a louça. Depois, foi tratar da ceia para a longa noite de Inverno.

Ti’Zé das Águias saiu para o terreiro. Ali esteve até ao lusco-fusco. O vento amainara e o pôr de sol era uma aguarela incendiada.

Lampeiro dividia o seu tempo entre a casa e o terreiro. Em casa, sentado à lareira; no terreiro, ora andando de um lado para outro, farejando e olhando, ora a ventos, procurando perceber o que se passaria nas redondezas, ora estiraçado ao sol que, baixo, quase nada aquecia

Ti’Zé das Águias, regressando a casa, foi sentar-se à lareira. Lampeiro seguiu-o.

Maria preparava para a ceia um frango de cabidela. Haveria figos secos e nozes à sobremesa. Passariam a meia-noite à lareira.

Um manto de paz descera sobre o Monte. Maria foi olhar o tempo. Voltando para dentro, disse: o céu está todo limpo e cheiinho de estrelas. Teremos uma noite linda.

Ti’Zé assentiu com um gesto.

Diligente, Maria tratava de alindar a mesa. Ti’Zé ajeitou o lume, levantou-se e foi lavar as mãos. Depois, sentou-se à mesa, para jantar. Lampeiro, seguindo o dono, sentou-se a seu lado. Maria sentou-se também à mesa e serviu a janta.

Ti’Zé, enquanto comia, elogiou: Ah, Maria, há quantos anos eu não provava uma cabidela assim! Desde a morte da minha mãe, acho eu.

Maria, agradecida, respondeu, com um sorriso: Ainda bem que está ao seu gosto, Ti’Zé.

Lampeiro, sentado entre ambos, olhava, ora para um, ora para outro, seguindo o diálogo.

Puxando do seu velho relógio de algibeira, Ti’Zé exclamou: aqui estamos ceando e as horas correndo. É meu costume deitar-me cedo, mas, hoje, teremos de passar a meia-noite a pé, pois o tal menino dizem ter vindo ao mundo a essa hora.

É verdade, confirmou Maria. Assim reza a tradição e também lá na cidade assim ouvi. E prosseguiu: Lá na cidade era uma canseira, toda aquela gente de um lado para o outro, comprando roupas e brinquedos para as crianças. Era um grande negócio para as lojas!

Ti’Zé, atalhou: Pois, deveria ser. Vi essa canseira na vila. Não seria igual, mas teria as suas parecenças. Aqui, na aldeia, as coisas não são assim. O povo mal ganha para o sustento. E as crianças terão de se sujeitar, coitadinhas!

Tadinhas delas, lamentou Maria. Dizem que somos todos iguais, mas o natal e tudo o mais está sujeito à força do dinheiro. E também dizem que o menino nasceu pobrezinho para dar o exemplo…

É verdade, também ouvi dizer isso, confirmou Ti’Zé das Águias, mas, pelos vistos, o exemplo deste menino não medrou. Isto de ser rico e querer ser pobre é uma história muito mal amanhada!

Maria, sorrindo, rematou: Se fosse bom ser pobre, não haveria ricos…

Ti’Zé das Águias sorriu também e disse: É bom conversar destas coisas da Vida, mas não adianta. A força está nas mãos de quem manda. O povo vai esperando por dias melhores, mas ninguém sabe quando será. Sabe, Maria, quem tem a barriga cheia não se lembra de quem tem fome.

Maria confirmou: É verdade e esse ditado diz tudo. Diz-se agora que as coisas vão mal lá para as Africas e que já mandaram soldados para lá. É mais uma desgraça que vem aí!

Ti’Zé das Águias sentenciou: Os homens não se entendem. O que um quer, o outro não quer. E o povo é só penar! Sabe uma coisa: se só houvesse dois homens, um seria contrabandista e o outro guarda-fiscal. É assim, não se entendem, não há união.

Eu sempre vi o mundo assim. E vou morrer sem ver mudança. Já não me adianta esperar. Pode ser que os mais novos ainda vejam alguma coisa de melhor. Eu já não tenho idade para lá chegar.

As horas passavam e a meia-noite estava prestes. Passaram da mesa para a lareira. Maria levou um taleiguito de figos e Ti’Zé começou a partir as nozes.

Maria comentou, divertida: Já viu que eu me chamo Maria e vosmicê se chama José? É verdade! Só falta aqui um menino…

Ti’Zé recomendou: Juízo, Maria! Dizem que é a Sagrada Família e a gente não é assim.

Maria apressou-se a esclarecer: Foi só uma brincadeira, não ofendi ninguém.

Tá  visto que não, reconheceu o velho. E, brincadeira por brincadeira, o seu nome é Maria do Céu e o meu é José das Águias. E as águias voam por essas alturas além…

Contrariamente ao que Ti’Zé poderia supor, a mulher não aderiu ao gracejo. Ficou pensativa e inquieta. Depois, num murmúrio, arriscou: Ti’Zé, até parece que foi o destino que me trouxe a pedir-lhe agasalho e fez com que vosmicê mo desse!...

Ti’Zé das Águias olhou-a fixamente. E assim ficaram, olhos nos olhos, como que querendo cada um sondar o que o outro pensava. Parecia que o tempo parara. Até que Maria do Céu, despertando daquele enleio, disse, arrebatada: É isso, Ti’Zé! Foi um milagre! O nosso milagre de natal! 

José-Augusto de Natal

 

 

Lisboa, 12 de Dezembro de 2009. 

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O último concerto 

 

Olhavam-se sempre que as pautas permitiam.

Ela deixava as mãos correr pelas teclas brancas e pretas, inclinava a cabeça para o lado direito, olhava-o e sorria!

Às vezes os olhos cruzavam-se e, então, era ele que quase parecia esquecer o violino, boca e olhos respondendo ao sorriso!

Havia ali qualquer coisa de mágico e irreal!

Não seria da música, a sonata para piano e violino em lá maior K 305 de Mozart, nem seria do ambiente em tons castanho, aqueles castanhos que só as madeiras emprestam, nem seria do ambiente, silencioso, respeitoso, desvelado e calmo, encimado pelos candelabros pesados, brilhantes, de mil velas!

Aliás  ali estava tudo a condizer, a música, os castanhos, as pessoas e os trajes, claros e compridos nelas, e bem escuros neles, luvas brancas nos empregados de libré, arrumados, hirtos, imóveis, nos locais mais atentos do salão.

Eles, os dois, sabiam-se os donos daqueles momentos, e os outros, espalhados pelo salão sem ousar um movimento, também se reconheciam pertença deles!

E à medida que a música continuava, ele aproximava-se mais, lentamente, quase sem se mexer, como se o violino o arrastasse no encerado do salão!

E ela percebia o movimento e o sorriso aumentava e a cabeça inclinava-se mais, mais para trás e para a direita, coquetterie de mulher segura de si, e o sorriso alargava-se e as mãos entornavam as notas das “deixas” que ele agarrava e prolongava sorrindo, tronco balanceando acompanhando-as, olhos fechados e sorrindo também.

E os movimentos foram ficando cada vez mais suaves até que o braço direito parou de empurrar o arco e os dedos pararam de dançar escalas, cordas e teclas, silenciando as últimas notas que subiram, lentas, as luzes do salão.

E quando as palmas violaram luzes e castanhos, ele segurou o violino com a mão direita, estendeu a esquerda, encontrou a dela, curvaram-se, sorrindo-se os dois, da música, do irreal e da magia.

Abriu os olhos quando as badaladas da meia-noite na torre da igreja matriz, silenciaram as palmas, e a enfermeira, sorridente, lhe veio dizer “já pode entrar!”

Agarrou a caixa do violino e, sorrindo, entrou no quarto onde a filha aconchegava no peito, pela primeira vez, um corpito minúsculo acabado de nascer.

Sem largar o sorriso, poisou a caixa do violino bem no fundo da cama, “isto é para ele!”.

Tocou-lhes suavemente nas faces e sentou-se a olhá-los.

Só se levantou, algum tempo depois e ainda a sorrir, quando duas lágrimas lhe escorreram, pesadas e lentas, os cantos da boca.

E então, bateu palmas, baixinho, suavemente, para não perturbar a beleza da obra e do quadro que tinha em frente.

Depois numa vénia, abandonou o quarto, sem apagar o sorriso e sem secar as lágrimas.

Dia 26, rádios, televisões e jornais, fizeram-lhe o obituário e deram-lhe espaços em fotos e pedaços de concertos.

Nenhum deles referiu o nascimento do neto, nem pelo “acaso” da coincidência!

A vida há  muito tempo que deixou de ser notícia! 

António M. Oliveira

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estou grataPelasRespostas/partilhas

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generalista sobre literatura e a vida. Assim acaba por integrar análise sócio-política pois toda a vida nela está imersa.
e sobre mim...
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